quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

um natal verde e amarelo num trem de passageiros




-Daqui a pouco a gente pode retocar a maquiagem. Ainda falta muito pro trem chegar.
A outra não disse palavra. Mexeu os cabelos negros, curtos e lisos para um lado e adentrou o banheiro do vagão. Talvez fosse melhor não adiar o retoque; lápis delineador e calor, definitivamente, não combinam.
-Moça, como é esse trabalho que vocês tão fazendo? - continuou a primeira, desta vez pra mim. Tinha cabelos médios, vermelhos e lisos. Um forte traço negro encimava suas pálpebras e a argola no nariz acompanhava o colete xadrez por cima da blusa estampada e os tênis importados coloridos.
Era uma longa história, aquela de estarmos no trem, mas tentei resumir em duas ou três frases.
-Ah, que legal, hein. É, eu nunca vi dessas coisas no trem das vezes em que viajei.
-Você viaja sempre?
-Mais ou menos. Tenho família em Ipatinga, mas moro mesmo em São Paulo.
-Capital?
-Não, em Campinas. Mas é uma cidade enorme também. Em Minas é diferente né, as cidades são pequenas, não me acostumo muito. Bom mesmo é só pra passar uns tempos.
-Já se acostumou com Campinas, né. E ela, é sua amiga?
-Minha irmã. Mais nova que eu mas nem parece, né. Ela tem 14 e, eu, 16. Todo mundo acha que é o contrário.
Ela riu.
-Lá em Campinas, a gente gosta mesmo de baladas, sabe. Tem baladas grandes, que enchem de gente da nossa idade, tipo, que são proibidas pra maiores de 18. A MegaTeen* é só pra pessoas de 14 a 18 anos. E bandas grandes, tipo CPM 22 e Charlie Brown Jr.
-Ah.
-A diferença é só que não pode vender bebida alcóolica.

***

-Ô moça, ô moça. Espera que eu preciso te falar uma coisa.
É, íamos levar uma dura do monitor do trem. Aquela nossa intervenção estava se convertendo em algazarra, eu sabia.
-Oi?
-Sabe o que é?
Em tom bastante confidencial
-Eu queria que você visse com o seu pessoal lá se não tinha como reservar duas daquelas panelinhas em miniatura, pra mim e um colega meu.
-Ah, pode sim. Passa depois lá no último vagão e pega com a gente.
-Muito obrigado, viu!
Sorriso largo.

***

-As pessoas me confundem com a Tetê Espíndola. Vários e vários já me pararam na rua perguntando isso. Não, que isso, nem sou. Moça, repita comigo: yo soy una guapa! Não, não assim. De novo, assim, yo soy una guapa! Isso! Moço, você é bem sexy, hein!
Ajeitou o chapéu de sol na cabeça, levantou os longos cabelos e rodopiou.
-Minha neta é a musa do Atlético. Filha de meu filho. O sobrenome Caldeira, minha filha, é português, de Portugal. Um dos meus filhos é o pai da Renata, o outro é advogado da Fiat, na Itália. Meu namorado de agora é um barman espanhol. Na verdade, eu não gosto muito de beijar na boca. Isso é meio nojento, é perigoso pegar sapinho. Beijei na boca poucas vezes na minha vida. Recentemente eu fiz uma cirurgia nos seios, olha pra você ver as marcas aqui.
Abaixou timidamente uma parte do decote garboso.

***

-Gente, bom dia! Vai ter uma oficina de brinquedos reciclados do último vagão; as crianças não querem ir?
Ela sorriu.
-Meninos, vocês querem?
Três assentimentos de cabeça.
-Pode colocar o nome dos três aí, moça.
-Seu nome, mocinha?
-Marcela.
-Marcela de quê?
-Silva.
-E vocês, mocinhos? Eles são gêmeos, né?
Ela deu um sorriso furtivo.
-Todo mundo fala. Mas nem são, acredita? Um é meu filho e o outro é meu sobrinho. Eles são primos.
Os meninos saíram correndo para o último vagão. Em tom confidencial ela disse:
-Tenho uma dó sabe. O Igor não tem mãe, sabe. Acho que ele me enxerga como uma mãe.
-Os dois devem ser muito unidos, né. Ainda mais pela semelhança, que é muito grande.
-Demais, menina, demais.

***


domingo, 1 de novembro de 2009

De repente pode ser


Meu tio oscila entre a opinião contundente e uma maleabilidade que cabe bem a diferentes situações. E o faz entre um e outro prato de janta, que ele não fica sem nem em sexta-feira santa. Aliás, todas as sextas-feiras podem ser santas pra ele - desde muito novo, moço-menino, que ele religiosamente não arrisca carne no início do fim da semana. Me assegura que foi conselho do Papa Paulo VI, há muito tempo atrás. E me parece bem feliz comendo, dia anoitecendo ainda, um generoso prato de arroz, abóbora ralada, feijão e banana. O meu café com biscoitos de queijo e roscas de polvilho não o convence de que variar pode ser bom. Da mesma mesa em que come, afirma, rindo, que minha mãe agora virou capitalista porque se formou em Pedagogia. Pode ser que mamãe, ainda bem jovial às vésperas de uma aposentadoria no Estado, possa mesmo querer aumentar uns trocados na renda com o novo curso. E que mal há? Nenhum, o tio apressa em dizer. É pura brincadeira. Na verdade, ele acredita que bacanas mesmo são as grandes firmas que geram emprego pra muita gente. Isso sim. Completa com uma risada característica. Na rua, não deixa nunca de me lembrar que eu o peça a benção. É sagrado, e mesmo do outro lado da rua ele é capaz de atravessar para me concedê-la. Em dias de pós-jogo do Cruzeiro, um dos fanatismos de meu pai, ele sempre traz na bagagem comentários pra compartilhar com ele. E a cada opinião incisiva de meu pai, que lê e escuta diariamente futebóis, meu tio profere uma palavra de apoio, concordância e partilha de opinião. Também se preocupa com a provável gota de meu pai, que passou o dia inteiro com o pé apoiado na almofada da sala. Ligou e pessoalmente se prontificou a acompanhá-lo até a clínica, a apenas dois quarteirões de distância. Meu pai, topetudo, esqueceu-se da gota quando os analgésicos surtiram efeito.



quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aspas #10


"Carla Perez é sempre sinônimo de Ibope!"

(GIMENEZ, Luciana. Superpop. São Paulo: RedeTv!.2009)


quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Hoje é dia de marias



Há dias em que o que realmente importa é ajeitar as três bonequinhas vietnamitas perfumadas sobre a mesa branca, tão elegantemente vestidas com chita lilás de bolas bracas. Foi presente, então o carinho é maior. As redondinhas têm dificuldade em equilíbrio. Ou sentar no tapede felpudo do quarto e folhear papelaria nova, em meio a sorrisos furtivos quando lê nome de velhos conhecidos. Cuidar de papés esganiçados dentro de plásticos já opacos também pode ser uma terapia. Ou mesmo observar a foto de mesmo sobrenome sobre aquela mesma mesa branca, quando a janela aberta em muitos andares permitiu que o seu apoio continuasse de pé. Se não está, é arrumar de novo, de modo que continue vizinha das coleguinhas asiáticas. Nesses dias, o que realmente importa é saber por meio de quantas janelas o prédio da frente olha o meu. Ou tentar identificar onde aquelas crianças de "if you're feeling sinister" estão que fazem tanta algazarra. Pensar em como foram colhidas aquelas sonoras. Parecem tão sinceras. Uma bagunça que faz bem aos ouvidos. Nesses dias, a cama chama pelos extremos: cedo ou tarde demais. Hoje o caso deve ser o último.



quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Memória de elefante

Ela nasceu em 1969. Criada na política desde pequena, viu o funcionamento do AI-5, a anistia, a abertura, a eleição do primeiro civil para a presidência depois de duas décadas militares. Já grandinha, acompanhou também a promulgação da Constituinte, a primeira eleição direta pro Planalto, foi cara-pintada no impeachment, viu a chegada ao poder de um exilado político e, oito anos depois, a guinada inédita de um ex-operário metalúrgico ao posto político máximo no país.

Esta é Letícia, 40 anos, personagem-guia de uma reportagem do Jornal Nacional de hoje. Mas também poderiam ser Luizas, Marcelas, Renatas ou mesmo o próprio JN. Tanto faz. A matéria faz parte de uma série especial de reportagens "Jornal Nacional - 40 anos" e serve pra lembrar, mais uma vez, o quanto a televisão, o jornalismo e neste caso o próprio JN, tem papel fundamental na constituição de uma memória coletiva nacional.

Como para Letícia, também fazem parte da história familiar do JN momentos políticos fundamentais para a consolidação de uma das "maiores democracias do país", nas palavras de Fátima (a Bernardes). Foi uma criança obediente, por vezes apática (ou simplesmente conivente aos migos de infância), mas participou sempre, o que fez com que fornecesse aos brasileiros imagens inéditas de acontecimentos efervescentes. Inevitavelmente influenciou na construção desses próprios acontecimentos pra quem a assistia. (Re)Constitui assim uma memória grupal que não está pronta, e nem ficará, posto que é dinâmica por excelência. Ajudou a construir uma história política pro país, seja qual tenha sido.

Letícia não foi protagonista sozinha na reportagem de hoje. Dividiu a tela com Tancredo, Sarney, Itamar. Junto a amigos da velha guarda, pôde dizer o que representou pra ela a contagem de votos que impediram, ao menos provisoriamente, Fernando Collor de ocupar postos políticos no país. Nesse momento, o JN não me desamparou. Eu que, quando Aécio vibrou diante da promulgação da Carta de 88, ainda nem tinha sido concebida. Eu, com exatamente a metade de anos do JN, pude acompanhar cronologicamente a sequência de imagens de uma época que não vivi. Mas posso (re)viver.

Independente do quão bom isso seja ou não, eu me senti brasileira. Minha identidade nacional, aquela da qual tanto se fala, foi reafirmada. Mesmo que precise do JN para isso. Tomei novamente consciência daquilo que os livros de história, junto com meu avô, me contaram. Posso arriscar descrever a expressão de Cid Moreira quando afirmou que fora eleito no Brasil o primeiro presidente civil desde antes de 64. Sendo mais ousada, consigo dizer da confiança de Ulisses Guimarães levantando a Constituição para um Congresso que era só palmas. Não há como negar que a televisão, o Jornal Nacional, que bate ponto toda noite desde que Globo é Globo, (a emissora foi criada em 1965) ajudam a construir referências comuns aos membros de uma coletividade. Sentimento de pertença. Unidade, qualquer que seja, para um país de dimensões continentais, variado e fragmentário por natureza.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Aspas #9


"O xerox é a expressão pós-moderna da condição de saber".

(SALEJ, Sílvio. Aula de Sociologia III. Belo Horizonte: Fafich. 2009)


segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A venda

A venda do Seu Fernando é um lugar agradável. Coisa de interior mesmo, do legítimo. Na esquina, uma entrada em cada rua. Porta de ferro, barulhenta pra fechar. É preciso puxar com força e impor um cadeado na marra. Pra calcular, máquina antiga, alimentada por rolos de papel branco. Ruidoso barulho de impressão matricial e primórdios dos mostradores luminosos. Um pouco de tudo ali: sabonetes Iara, arrozes Tio João e mesmo pacotes de carvão Quentume. Sobre aquilo que se pode chamar um refrigerador já antigo, de portas grossas e resfriamento duvidoso, pihas de potes de doces. Cocadas, cajuzinhos e pés-de-moleque um em cada vasilha de plástico, ao lado de pirulitos coloridos de sabor artificial vermelho, azul e verde. Vassouras de tiras de plástico pet entrelaçadas com rodos de madeira desfiante, que enchem os dedos de farpas. Prateleira de filtros de barro Santa Tereza. Luzes amareladas incandescentes iluminam um cômodo de não mais que dezenas de metros quadrados, em que as divisórias entre os artigos à venda não são mais que os olhos do cliente astuto. Lugar onde o bombom ainda não ultrapassou a metade do real, os pães são na unidade e as etiquetas auto-adesivas são artigos de luxo. Um quadradinho de papel escrito no avesso, um pincel e uma fita durex já bastam. No fim de tarde, doses de cachaça e de café quente, fumegante na cozinha do dono, ali do lado, são os maiores atrativos. O sujeito leva uma pipoca de saco cor-de-rosa para a menina. Tem que estar crocante, senão ela joga no chão. Cabelos brancos já denunciam a velhice do estabelecimento. Óculos de aros grossos,e lentes embassadas também. Na mesma sacola em que se leva a garrafa vazia da bebida, o vasilhame cheio vai embora. A gaveta de dinheiro não permite bagunça: os compartimentos de madeira estão marcados pra sempre com traços pretos e grossos. Um real, dois reais, dez reais. É quanto a garrafa? Um e setenta. Com trinta centavos, já vou embora. "Tem mais menina, volta aqui", garante. Me entrega os outros oito.