quarta-feira, 23 de julho de 2008

Grandes Amores

Sobre uma pequena mesa, moringa com água, caneca e copo. Junto disso, uma planta e um banco simples de madeira, sob uma luz baixa e amarelada. À primeira vista, lugar comum. No entanto, ele ganha vida com a interpretação de João Bosco Alves na peça O Amor no Grande Sertão. Assiti à montagem no Festival de Inverno deste ano, em Diamantina. Coisa curiosa é que a diretora, Ana Leonel, é esposa do João. E são só os dois. Ele, com a interpretação magnífica, e ela, com roteiro, direção, figurino, cenário e tudo o mais. Um casal e tanto, eu diria.

A peça é inspirada em Grande Sertão: Veredas. O monólogo de João é, no início, um afluxo desconexo de causos do sertão mineiro, de trechos da infância do narrador-personagem Riobaldo e de reflexões sobre o bem e o mal, como no início do romance roseano. As tensões e conflitos entre bandos de jagunços no sertão permeiam a montagem. Ele fala a um interlocutor subentendido que, no caso de Amor no Grande Sertão, é o público que o assiste. Por vezes de olhar resignado, outras vezes andando sobre o palco, sempre com gestos eloqüentes, o ator João Bosco dá voz aos constantes aforismos presentes ao longo do livro. “Deus é paciência”.

O encontro com Reinaldo, que depois diz se chamar Diadorim, é rememorado com olhar nostálgico por João Bosco. Riobaldo não se esquece dos olhos verdes e das feições leves daquele jagunço moço que viu pela primeira vez à beira do Velho Chico. “Perto da água todo mundo é feliz”. O contato com Diadorim se estreita mais e mais nas andanças dos dois jagunços pelo sertão mineiro. E o sentimento começa a brotar. “Era ele tá perto de mim e nada me faltava”.

João Bosco também faz conhecer, por meio de Riobaldo, Nhorinhá e Otacília, mulheres que povoam os pensamentos do sertanejo. Apesar disso, a angústia cresce. Como dois jagunços poderiam andar de mãos dadas em meio ao bando? Diadorim passa a demonstrar ciúme pelas duas raparigas, o que culmina em um acordo: dali em diante, nenhum dos dois se envolveria com mulher alguma. Sem se culpar, agora Riobaldo assume pra si mesmo que ama Diadorim, sem, no entanto, revelar isso a ele.

As tensões entre os bandos rivais se acirram. O chefe Joca Ramiro morre e Diadorim quer vingança a todo custo. E a batalha não demora a começar. Diadorim e Hermógenes, o assassino de Joca Ramiro, se engalfinham numa luta sangrenta. A morte carrega ambos. E João Bosco, o rosto em tons escarlates e os olhos lacrimejantes, interpreta com perfeição a última dor de Riobaldo na peça: a descoberta de que Diadorim era, na verdade, uma mulher. “Diadorim, meu amor”.

O público aplaudiu de pé por um tempinho. João Bosco foi objetivo. "Muito obrigado!".

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Personagem # 0

Um personagem da vida real pode, porventura, ganhar as "páginas" do blog daqui em diante.

Sempre de cócoras defronte ao portão verde de casa, na mais genuína representação inconsciente da pose de Jeca Tatu. Esse é o Sérgio. Vizinho calouro em meio a vizinhas veternas, o Sérgio se arranchou na casa que dá de frente pra minha, lá em Cajuru, há cerca de dois anos. E, na sua quietude permanente, que toma forma em um corpo esguio, cabelos grisalhos e um bigode escuro bem-aparado, ele se faz notável.

Além de vínculos afetivos, Sérgio também tem ligações de sangue com as moradoras. É pai da mocinha da casa do portão verde, que, em meio a um pique-esconde e outro, vira-e-mexe me falava sobre o Sérgio. "Hoje vou visitar meu pai".

Um dia minha mãe me explicou a situação. A mãe da mocinha namorou um tempo com o Sérgio, e a mocinha foi fruto desse namoro. Na época, ele já tinha se separado de outra mulher e tinha, inclusive, filhas crescidas.

Quando ainda morava em Cajuru, notei que o Sérgio vinha visitando muito a mocinha da casa do portão verde. A mãe, sempre uma anfitriã das melhores. E a mocinha, cuja característica mais marcante é a simplicidade por trás de um corpanzil generoso, mantinha o sorriso durante toda a visita.

E ele foi se achegando. Ironia do destino ou não, o dono da casa ao lado da casa de portão verde foi-se embora pra outras bandas. "Aluga-se". Não demorou muito, o Sérgio era o inquilino. E os dias da mocinha e da mãe dela pareciam mais felizes. "Pai!?". Todo o dia a mocinha chamava no portão para oferecer um prato de comida, um saco de biscoitos ou mesmo um dedo de prosa.

Hoje, quando estou em Cajuru, é impossível não vê-lo. Quando abro o portão da rua, em qualquer hora do dia, Sérgio é o primeiro que vejo. De cócoras, defronte ao portão verde. Dá até mais segurança de sair de casa. Ele vai estar sempre olhando pra ela. E para as outras casas. Para os cães que passeiam. Para a rua.