sexta-feira, 30 de maio de 2008

Aspas # 3

"O mundo se divide entre aqueles que compram canetas e aqueles que pegam as canetas daqueles que as compraram"
(SILVEIRA, Carolina. Encontro no Chico da Carne 3. Belo Horizonte: Barro Preto. 2008)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A carona podia esperar

A menina atravessou depressa a rua. O seu ônibus passaria do outro lado da calçada e ela não sabia o horário. Em dia de sábado os horários mudam, ficam mais espaçados, e ela havia se esquecido de olhar no site quando passaria outro.

Com uma mochila nas costas e sacola em uma das duas mãos, com o presente recém-comprado de dia das mães dentro dela, ela enfim conseguiu atravessar, em meio àquele mundo de veículos que só as capitais conhecem. A pressa era grande: a carona para a sua cidade de origem ia sair dali a 20 minutos, de um ponto bem distante dali. Além disso, tinha que considerar o trânsito que, em vésperas de datas como aquela, tendia a ficar mais cheio. Também, não queria passar vergonha com o primo, que lhe dava a carona, bondosamente, todas as vezes que ela pedia.

Inquieta e já no ponto, ocupado por idosos, adultos e crianças, ela virava incessantemente a cabeça para a direção da qual o ônibus viria. Tirava o celular da mochila: 15 para as uma da tarde. Nem sinal de ônibus. Só faltava o 2004 não passar aos sábados. Pronto. Aí complicava. Como ia fazer para avisar o primo que iria atrasar, sendo que, para variar, não tinha créditos em seu celular? Ele ia perceber a demora e iria ligar. Aí ela ia ter que se desculpar até, dizendo do trânsito, do erro de ônibus, e que já tinha saído de casa tarde pra comprar o presente da mãe, já que...

Aí, percebeu ao lado dela uma senhora. Assim, devia ter uns 75 anos. Cabelos grisalhos e crespos, pele mulata, vestida de cinza e carregando sacolas. Numa delas, dava pra ver um ramalhete simples, de flores frescas. Pelo olhar determinado dela, na mesma direção que o da menina, ela parecia utilizar sempre aquele ponto.

-A senhora sabe se o 2004 passa mesmo aqui? Estou esperando há dez minutos e ele não chega... Tô com medo de ele não passar.
-Ele vai pra onde?
-Para a avenida Antônio Carlos.
-Ah, passa sim! Pode ficar tranqüila que ele passa, minha filha.
-Ah, que bom! Obrigada!
Agora estava mais tranqüila. Era só esperar. Mas, que boa vontade tinha tido aquela senhora para com ela. Respondera com um sorriso tão amável, desses que não é tão comum assim em conversas com desconhecidos... Virou-se para ela mas, agora, sem o egoísmo de antes:

-O ônibus da senhora também passa aqui? (Numa espécie de pergunta idiota, daquelas que já se sabe a resposta)
-Passa sim, minha filha. É o ônibus que vai para o Bonfim. Tenho que ver mamãe, pois amanhã não vou poder ver ela.
-Que legal! Então a senhora ainda tem mãe? E ela mora no bairro Bonfim?
-Não, eu vou é levar essas flores no túmulo dela, no cemitério Bonfim.
Pausa. Má nota terrível, a menina pensou. Há pouco mais de um ano, ainda não conhecia de cor o nome de todos os cemitérios da cidade; lembrava-se só do da Paz e do da Boa Viagem. Agora a senhora com certeza iria desviar o olhar para a avenida por onde o ônibus viria, e não ia querer mais papo. Com razão. Surpreendentemente:
-Sabe menina, acho que hoje vou atrasar o almoço. Mas não posso deixar de ver mamãe, porque amanhã minhas filhas e netos vão almoçar lá em casa. Eu tenho um filho que mora comigo, ele é taxista sabe. Ah, mas ele pode pedir marmita também, se achar ruim.
-Ah, ele vai entender que é por uma boa causa.
-Pois é, vai sim. Aí amanhã vai aquele tanto de neto lá pra casa. Tive uma nora que morreu com 35 anos, quando meu neto tinha 9 anos. Hoje ele tem 15, e vai pra lá amanhã também.
-Então a senhora ajudou a olhar ele?
-Sim, ajudei. E meu marido já morreu faz tempo. Criei cinco filhos, e hoje...

Uma pequena aglomeração começara a se juntar no passeio. O 2004 estacionava próximo ao meio-fio.
-Ô senhora, eu preciso ir, meu ônibus chegou. Muito obrigada pelas informações. Um feliz dia das mães pra senhora, viu?
-Obrigada, minha filha. Você tem mãe?
-Graças a Deus, sim.
-Então mande um abraço pra ela.
-Mando sim!
-Qual é seu nome? O meu é Celina, minha filha.
A menina respondeu e abriu um largo sorriso, acenando com a mão, já nos degraus da porta do ônibus. Faltavam 5 para as uma. Ela estava com fome, o ônibus estava cheio e, o sol lá fora, de rachar. Mas ela tinha sido merecedora de confiança gratuita aquele dia. Se teve pagamento, foi apenas com um sorriso.
P.s.: Qualquer semelhança é mera coincidência.