quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

um natal verde e amarelo num trem de passageiros




-Daqui a pouco a gente pode retocar a maquiagem. Ainda falta muito pro trem chegar.
A outra não disse palavra. Mexeu os cabelos negros, curtos e lisos para um lado e adentrou o banheiro do vagão. Talvez fosse melhor não adiar o retoque; lápis delineador e calor, definitivamente, não combinam.
-Moça, como é esse trabalho que vocês tão fazendo? - continuou a primeira, desta vez pra mim. Tinha cabelos médios, vermelhos e lisos. Um forte traço negro encimava suas pálpebras e a argola no nariz acompanhava o colete xadrez por cima da blusa estampada e os tênis importados coloridos.
Era uma longa história, aquela de estarmos no trem, mas tentei resumir em duas ou três frases.
-Ah, que legal, hein. É, eu nunca vi dessas coisas no trem das vezes em que viajei.
-Você viaja sempre?
-Mais ou menos. Tenho família em Ipatinga, mas moro mesmo em São Paulo.
-Capital?
-Não, em Campinas. Mas é uma cidade enorme também. Em Minas é diferente né, as cidades são pequenas, não me acostumo muito. Bom mesmo é só pra passar uns tempos.
-Já se acostumou com Campinas, né. E ela, é sua amiga?
-Minha irmã. Mais nova que eu mas nem parece, né. Ela tem 14 e, eu, 16. Todo mundo acha que é o contrário.
Ela riu.
-Lá em Campinas, a gente gosta mesmo de baladas, sabe. Tem baladas grandes, que enchem de gente da nossa idade, tipo, que são proibidas pra maiores de 18. A MegaTeen* é só pra pessoas de 14 a 18 anos. E bandas grandes, tipo CPM 22 e Charlie Brown Jr.
-Ah.
-A diferença é só que não pode vender bebida alcóolica.

***

-Ô moça, ô moça. Espera que eu preciso te falar uma coisa.
É, íamos levar uma dura do monitor do trem. Aquela nossa intervenção estava se convertendo em algazarra, eu sabia.
-Oi?
-Sabe o que é?
Em tom bastante confidencial
-Eu queria que você visse com o seu pessoal lá se não tinha como reservar duas daquelas panelinhas em miniatura, pra mim e um colega meu.
-Ah, pode sim. Passa depois lá no último vagão e pega com a gente.
-Muito obrigado, viu!
Sorriso largo.

***

-As pessoas me confundem com a Tetê Espíndola. Vários e vários já me pararam na rua perguntando isso. Não, que isso, nem sou. Moça, repita comigo: yo soy una guapa! Não, não assim. De novo, assim, yo soy una guapa! Isso! Moço, você é bem sexy, hein!
Ajeitou o chapéu de sol na cabeça, levantou os longos cabelos e rodopiou.
-Minha neta é a musa do Atlético. Filha de meu filho. O sobrenome Caldeira, minha filha, é português, de Portugal. Um dos meus filhos é o pai da Renata, o outro é advogado da Fiat, na Itália. Meu namorado de agora é um barman espanhol. Na verdade, eu não gosto muito de beijar na boca. Isso é meio nojento, é perigoso pegar sapinho. Beijei na boca poucas vezes na minha vida. Recentemente eu fiz uma cirurgia nos seios, olha pra você ver as marcas aqui.
Abaixou timidamente uma parte do decote garboso.

***

-Gente, bom dia! Vai ter uma oficina de brinquedos reciclados do último vagão; as crianças não querem ir?
Ela sorriu.
-Meninos, vocês querem?
Três assentimentos de cabeça.
-Pode colocar o nome dos três aí, moça.
-Seu nome, mocinha?
-Marcela.
-Marcela de quê?
-Silva.
-E vocês, mocinhos? Eles são gêmeos, né?
Ela deu um sorriso furtivo.
-Todo mundo fala. Mas nem são, acredita? Um é meu filho e o outro é meu sobrinho. Eles são primos.
Os meninos saíram correndo para o último vagão. Em tom confidencial ela disse:
-Tenho uma dó sabe. O Igor não tem mãe, sabe. Acho que ele me enxerga como uma mãe.
-Os dois devem ser muito unidos, né. Ainda mais pela semelhança, que é muito grande.
-Demais, menina, demais.

***


domingo, 1 de novembro de 2009

De repente pode ser


Meu tio oscila entre a opinião contundente e uma maleabilidade que cabe bem a diferentes situações. E o faz entre um e outro prato de janta, que ele não fica sem nem em sexta-feira santa. Aliás, todas as sextas-feiras podem ser santas pra ele - desde muito novo, moço-menino, que ele religiosamente não arrisca carne no início do fim da semana. Me assegura que foi conselho do Papa Paulo VI, há muito tempo atrás. E me parece bem feliz comendo, dia anoitecendo ainda, um generoso prato de arroz, abóbora ralada, feijão e banana. O meu café com biscoitos de queijo e roscas de polvilho não o convence de que variar pode ser bom. Da mesma mesa em que come, afirma, rindo, que minha mãe agora virou capitalista porque se formou em Pedagogia. Pode ser que mamãe, ainda bem jovial às vésperas de uma aposentadoria no Estado, possa mesmo querer aumentar uns trocados na renda com o novo curso. E que mal há? Nenhum, o tio apressa em dizer. É pura brincadeira. Na verdade, ele acredita que bacanas mesmo são as grandes firmas que geram emprego pra muita gente. Isso sim. Completa com uma risada característica. Na rua, não deixa nunca de me lembrar que eu o peça a benção. É sagrado, e mesmo do outro lado da rua ele é capaz de atravessar para me concedê-la. Em dias de pós-jogo do Cruzeiro, um dos fanatismos de meu pai, ele sempre traz na bagagem comentários pra compartilhar com ele. E a cada opinião incisiva de meu pai, que lê e escuta diariamente futebóis, meu tio profere uma palavra de apoio, concordância e partilha de opinião. Também se preocupa com a provável gota de meu pai, que passou o dia inteiro com o pé apoiado na almofada da sala. Ligou e pessoalmente se prontificou a acompanhá-lo até a clínica, a apenas dois quarteirões de distância. Meu pai, topetudo, esqueceu-se da gota quando os analgésicos surtiram efeito.



quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aspas #10


"Carla Perez é sempre sinônimo de Ibope!"

(GIMENEZ, Luciana. Superpop. São Paulo: RedeTv!.2009)


quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Hoje é dia de marias



Há dias em que o que realmente importa é ajeitar as três bonequinhas vietnamitas perfumadas sobre a mesa branca, tão elegantemente vestidas com chita lilás de bolas bracas. Foi presente, então o carinho é maior. As redondinhas têm dificuldade em equilíbrio. Ou sentar no tapede felpudo do quarto e folhear papelaria nova, em meio a sorrisos furtivos quando lê nome de velhos conhecidos. Cuidar de papés esganiçados dentro de plásticos já opacos também pode ser uma terapia. Ou mesmo observar a foto de mesmo sobrenome sobre aquela mesma mesa branca, quando a janela aberta em muitos andares permitiu que o seu apoio continuasse de pé. Se não está, é arrumar de novo, de modo que continue vizinha das coleguinhas asiáticas. Nesses dias, o que realmente importa é saber por meio de quantas janelas o prédio da frente olha o meu. Ou tentar identificar onde aquelas crianças de "if you're feeling sinister" estão que fazem tanta algazarra. Pensar em como foram colhidas aquelas sonoras. Parecem tão sinceras. Uma bagunça que faz bem aos ouvidos. Nesses dias, a cama chama pelos extremos: cedo ou tarde demais. Hoje o caso deve ser o último.



quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Memória de elefante

Ela nasceu em 1969. Criada na política desde pequena, viu o funcionamento do AI-5, a anistia, a abertura, a eleição do primeiro civil para a presidência depois de duas décadas militares. Já grandinha, acompanhou também a promulgação da Constituinte, a primeira eleição direta pro Planalto, foi cara-pintada no impeachment, viu a chegada ao poder de um exilado político e, oito anos depois, a guinada inédita de um ex-operário metalúrgico ao posto político máximo no país.

Esta é Letícia, 40 anos, personagem-guia de uma reportagem do Jornal Nacional de hoje. Mas também poderiam ser Luizas, Marcelas, Renatas ou mesmo o próprio JN. Tanto faz. A matéria faz parte de uma série especial de reportagens "Jornal Nacional - 40 anos" e serve pra lembrar, mais uma vez, o quanto a televisão, o jornalismo e neste caso o próprio JN, tem papel fundamental na constituição de uma memória coletiva nacional.

Como para Letícia, também fazem parte da história familiar do JN momentos políticos fundamentais para a consolidação de uma das "maiores democracias do país", nas palavras de Fátima (a Bernardes). Foi uma criança obediente, por vezes apática (ou simplesmente conivente aos migos de infância), mas participou sempre, o que fez com que fornecesse aos brasileiros imagens inéditas de acontecimentos efervescentes. Inevitavelmente influenciou na construção desses próprios acontecimentos pra quem a assistia. (Re)Constitui assim uma memória grupal que não está pronta, e nem ficará, posto que é dinâmica por excelência. Ajudou a construir uma história política pro país, seja qual tenha sido.

Letícia não foi protagonista sozinha na reportagem de hoje. Dividiu a tela com Tancredo, Sarney, Itamar. Junto a amigos da velha guarda, pôde dizer o que representou pra ela a contagem de votos que impediram, ao menos provisoriamente, Fernando Collor de ocupar postos políticos no país. Nesse momento, o JN não me desamparou. Eu que, quando Aécio vibrou diante da promulgação da Carta de 88, ainda nem tinha sido concebida. Eu, com exatamente a metade de anos do JN, pude acompanhar cronologicamente a sequência de imagens de uma época que não vivi. Mas posso (re)viver.

Independente do quão bom isso seja ou não, eu me senti brasileira. Minha identidade nacional, aquela da qual tanto se fala, foi reafirmada. Mesmo que precise do JN para isso. Tomei novamente consciência daquilo que os livros de história, junto com meu avô, me contaram. Posso arriscar descrever a expressão de Cid Moreira quando afirmou que fora eleito no Brasil o primeiro presidente civil desde antes de 64. Sendo mais ousada, consigo dizer da confiança de Ulisses Guimarães levantando a Constituição para um Congresso que era só palmas. Não há como negar que a televisão, o Jornal Nacional, que bate ponto toda noite desde que Globo é Globo, (a emissora foi criada em 1965) ajudam a construir referências comuns aos membros de uma coletividade. Sentimento de pertença. Unidade, qualquer que seja, para um país de dimensões continentais, variado e fragmentário por natureza.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Aspas #9


"O xerox é a expressão pós-moderna da condição de saber".

(SALEJ, Sílvio. Aula de Sociologia III. Belo Horizonte: Fafich. 2009)


segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A venda

A venda do Seu Fernando é um lugar agradável. Coisa de interior mesmo, do legítimo. Na esquina, uma entrada em cada rua. Porta de ferro, barulhenta pra fechar. É preciso puxar com força e impor um cadeado na marra. Pra calcular, máquina antiga, alimentada por rolos de papel branco. Ruidoso barulho de impressão matricial e primórdios dos mostradores luminosos. Um pouco de tudo ali: sabonetes Iara, arrozes Tio João e mesmo pacotes de carvão Quentume. Sobre aquilo que se pode chamar um refrigerador já antigo, de portas grossas e resfriamento duvidoso, pihas de potes de doces. Cocadas, cajuzinhos e pés-de-moleque um em cada vasilha de plástico, ao lado de pirulitos coloridos de sabor artificial vermelho, azul e verde. Vassouras de tiras de plástico pet entrelaçadas com rodos de madeira desfiante, que enchem os dedos de farpas. Prateleira de filtros de barro Santa Tereza. Luzes amareladas incandescentes iluminam um cômodo de não mais que dezenas de metros quadrados, em que as divisórias entre os artigos à venda não são mais que os olhos do cliente astuto. Lugar onde o bombom ainda não ultrapassou a metade do real, os pães são na unidade e as etiquetas auto-adesivas são artigos de luxo. Um quadradinho de papel escrito no avesso, um pincel e uma fita durex já bastam. No fim de tarde, doses de cachaça e de café quente, fumegante na cozinha do dono, ali do lado, são os maiores atrativos. O sujeito leva uma pipoca de saco cor-de-rosa para a menina. Tem que estar crocante, senão ela joga no chão. Cabelos brancos já denunciam a velhice do estabelecimento. Óculos de aros grossos,e lentes embassadas também. Na mesma sacola em que se leva a garrafa vazia da bebida, o vasilhame cheio vai embora. A gaveta de dinheiro não permite bagunça: os compartimentos de madeira estão marcados pra sempre com traços pretos e grossos. Um real, dois reais, dez reais. É quanto a garrafa? Um e setenta. Com trinta centavos, já vou embora. "Tem mais menina, volta aqui", garante. Me entrega os outros oito.


terça-feira, 28 de julho de 2009

Festivale!

Impressões ficam para depois. Por enquanto, dá para conferir tudo o que acontece no Festivale por meio do site da assessoria de comunicação do evento. Para algo mais livre, tem o blog.

www.festivale27.tmp.br
www.festivale27.blogspot.com

Isso é o que se chama de trabalho em equipe. Conosco, cerca de 20 jovens do Vale do Jequitinhonha, já capacitados por oficinas de comunicação em algum momento de suas vidas. Tá bacana demais! Acesse, navegue, comente!


domingo, 19 de julho de 2009

Aspas #8

"Enquanto o papai está fazendo gol, a gente vai aqui pisar na cabeça do diabo".

(HERNANDES, Sônia. Culto na Igreja Renascer. In: Para Luca, filho de Kaká e Caroline, esposa que vai abrir um tempo da Igreja Renascer em Milão. Flórida: Igreja Renascer. 2009)


sábado, 30 de maio de 2009

Algo mais que um teclado



Está confirmado: a trajetória do piauiense Frank Aguiar, o Caozinho dos Teclados, será tema de filme. Até agora, o título do longa fica em Os Sonhos de um Sonhador – A História de Frank Aguiar. O atual deputado federal pelo PTB saiu de Itainópolis, num dos menores estados do país, para tentar a vida em Terezina e, depois, na capital paulista, "onde trilharia sua carreira de sucesso". A iniciativa do filme é do próprio cantor (também tecladista, músico, multimídia). Para iso, Frank arrebanhará a gorda quantia de 6 milhões de reais.

É uma conotação mítica. A princípio, sujeitos normais, desconhecidos, longe dos holofotes midiáticos, políticos, enfim. Pobres, sofredores, desvalidos. Acometidos por toda a sorte de desgraças. Depois, vem a oportunidade. A luta e o esforço para chagarem onde estão acabam por revesti-los com a capa do sucesso. Mais que merecido - os espectadores se emocionam. Lindo, lindo, um herói. Basta ver Dois Filhos de Francisco, que conta a história dos goianos Mirosmar José de Camargo e Welson David de Camargo, vulgos Zezé de Camargo&Luciano.

Longe de alcançar o sucesso, porém, estão milhares outros. Trajetórias merecedoras, talvez, de reconhecimento. Mas não têm nada que os torne heróis. Nunca serão um mito. Alguns deles, pouqíssimos num mar de gente, têm porém seus 15 minutos de fama. Mesmo que num espaço pequeno de jornal, coisa pouca, coluna de não mais que 10000 caracteres. Mas valeu a tentativa. Obra da gaúcha Eliane Brum. Repórter do Zero Hora, a moça saiu pelas ruas de Porto Alegre, com a cara, a coragem e possivelmente um bloco e gravador. Colocou num espaço de visibilidade por excelência - o jornal - aquilo que muitos enxergam, mas ninguém vê. Resultou no livro A vida que ninguém vê.

Contra o bordão jornalístico de quê a notícia só vem se o homem morder o cachorro, Eliane capturou muitos cachorros mordendo os homens. Por vezes, a ferida se curava, mas ficavam as cicatrizes. De outras, a ferida se abria diariamente. Algumas vezes, nem doía mais. Alguns dos feridos: Israel, o deficiente mental que ganhou a escola. Dona Maria e os olhos brilhantes. Frida e sua cidadania às avessas. Sapo e sua mendicância ao rés-do-chão. Geppe e sua resistência ao banho. Caminhando doloridos, sem precisar quê ninguém os visse.








domingo, 10 de maio de 2009

De dar gosto [de fruta]




Que comercial de margarina, que nada! Sempre ótima, a Piauí, edição "especial e pré-sal de segundo aniversário" #25, mostra que nem só de grandes conglomerados publicitários vive o mercado editorial.


sábado, 25 de abril de 2009

As horas de Mrs. Dalloway


O tempo, de todos os lados. Multidimensionado. De um e de outro, de ninguém, de todos. A maestria com que Virgínia Woolf regeu o tempo em Mrs. Dalloway provoca arrepios. Não é à toa que, se não se chamasse o nome da protagonista, o livro seria As Horas. Nome que, aliás, Stephen Daldry tomou emprestado para o filme em que relê livremente Mrs. Dalloway.

Pouco menos de dez horas em mais de duzentas páginas. Uma distensão embevecida. Clarissa Dalloway está às voltas com os preparativos para a recepção que vai dar em sua casa à noite. Simples, mas extremamente complexo. Poucas horas de convívio com os personagens são suficientes para conhecer as entranhas dos que cruzam com Clarissa durante o dia, aquele longo dia. O tempo de cada um. Cruzam-se como numa teia, tão entremeada como a relação de Clarissa com aquelas pessoas.

Em belíssimos fluxos de consciência, o narrador é como um ser invisível que vai aos poucos capturando fios de pensamento, tão desconectadamente conectados. Digamos que as passagens num mundo objetivo são poucas. Clarissa passa apressada pela praça; precisa voltar pra casa. Lucrezia e o marido Septimus no banco da mesma praça; seu marido não está bem. Breve encontro físico, início de um longo encontro de consciências.

Não há necessidade de retomada histórica. A História está ali, até mesmo nas influências que a I Guerra Mundial decerto teve sobre Virgínia. Ou na Londres do início do século passado. O escritor não é produto, mas parte integrante de seu tempo, bem como a obra. E a história de cada um que compõe Mrs. Dalloway também se desdobra na narrativa. No flux0 de seus pensamentos. Seus tempos de vida nos aparecem ali, no instante mesmo em que as pessoas se esbarram. Tempo da história e da narrativa se convergem no pensamento daquelas pessoas.

O tempo da leitura dilui-se naqueles apresentados de maneira tão inovadora por Virgínia, em pleno início do século XX. Escritora revolucionária até nesse sentido. Feminismo à parte, a mulher inova no fazer narrativo, na desconstrução da tradicional maneira de narrar. O crédito não vai só a ela, mas certamente ela faz por merecê-lo. À primeira vista (ou leitura), um pouco de estranhamento. Dificuldades talvez em acompanhar aqueles raciocínios tão meticulosamente construídos. É preciso dar tempo ao tempo. Quando se vê (ou lê), o leitor já está compatível com o(s) tempos(s) do livro. Mesmo que se gastem meses.

Mrs. Dalloway pouco progride no enredo de fato. Se Clarissa está casada com Richard, é mãe de Elizabeth e tem histórias mal-resolvidos com Peter e com Sally, assim o será sempre. É como se aquelas vidas já existissem e o narrador fizesse um corte temporal. Naquele presente, somos levados a lembranças e expectativas, passado e futuro dos personagens. Que se condensam e cristalizam no instante mesmo em que nos aparecem. A festa de recepção de Clarissa Dalloway vem para selar aqueles tempos. Nada será como nos tempos de juventude da Mrs. Richard, mas tudo pode ser como agora.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Fragmentos de tardes





Isso é pra discutir em Semiótica.

Dando nomes
apriosionamos
a liberdade natural
das coisas.

Dieter Ross


Ou talvez pra conversar com vovó.

Pontos e linhas
retas e curvas
o crochê é mesmo uma matáfora do tempo

Eva Pereira



Extraídos de um ônibus. É, um ônibus. O Programa de Extensão A tela e o Texto, da UFMG, desenvolveu a criativa idéia de mapear algumas linhas importantes na capital e amarrar lâminas literatas em cada banco. É o projeto Leitura para todos. Parece simples, mas pode tornar mais interessante um fim de tarde calorento e abafado em um 5102. A proposta é disponibilizar aos pegadores de ônibus textos de autores brasileiros quase sempre nem tão conhecidos, mas proporcionalmente interessantes. Uma folha A4 plastificada apenas, e que agrada na sua simplicidade.


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Ao Gabriel, com carinho



Porquês, motivos, razões ou circunstâncias

Atender com um sonoro "ei, meu bem!"
Dividir risadas debruçado nos balaústres do 716
Deixar que eu desfie estampas de blusas inusitadas
Virar o ano aceitando a ausência de bordas de catupiry
Candidatar-se pro porta-malas como se fosse tudo de bom
Assistir juntos ao Fantasma da Ópera
Retornar pacientemente os 9090
Contar a vida
Escutar uma vida.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Elos fracos


Lanchonete suja, logo àquela hora da manhã. Movimento intenso. Só o funcionário sozinho não consegue catar aqueles papéis antes que o freguês recém-chegado jogue outros dois por cima. Pra salgados muito gordurosos, eu, por exemplo, preciso de no mínimo uns cinco. Fora aqueles pra limpar a boca. O gari continua varrendo a porta da igreja. É, dizem que tem plantão de madrugada. E é bem capaz de aqueles serem os últimos minutos do expediente dele. Ficou ali na madrugada, no frio. Quando eu voltava da pizzaria, com o pessoal lá de casa, e via as janelas da rua fechadinhas, com cortinas cerradas e luzes apagadas, ficava imaginando como seria bom aquele escurinho. Dormir quentinha, num quarto gostoso. Ficava doida pra chegar em casa e fazer o mesmo, mas ainda faltavam dois quarteirões. Será que o gari sente o mesmo? Deve sentir. Imagina, ainda ter que ir pro ponto de ônibus e esperar mais uns 50 minutos até em casa. Eu tenho sorte. Reclamo demais. E aquela moça ali na praça? Logo cedo, com aquela saia. Hoje tá friozinho, ela deve tá sentindo frio. Os pêlos da perna devem estar arrepiados. Parece que ela também passou a noite ali. Possivelmente trabalhando. Como o gari. Mas não na mesma coisa. Trabalhando. Os cabelos desgrenhados. Um loiro desbotado, com a raiz negra. Mal-cuidado. Dá vontade de conversar, saber a história daquela noite. Aliás, essa coisa de história das pessoas. Todos os dias, milhares de pessoas se cruzam umas com as outras. As histórias delas também. Clarissa Dalloway tinha uma teoria interessante. Como é que era? Achei meio complicada, tive que ler o parágrafo umas três vezes. Meio que a sua vida se completa na do outro. Essas histórias indizíveis, uns dos outros. Parece aquela fila de formiguinhas. De vez em quando eu gostava de deitar na cama, olhar pro teto e observar a fila delas. Toda vez que duas se encontram, param. Coisa de um segundo, mas param. Sempre imaginava o que uma falava pra outra. Depois disso, seguiam religiosamente a trilha. Diferentes, mas todas iguais. Iguais a gente mesmo. Aquele pessoal da Antônio Carlos, por exemplo. Pessoas iguais a nós. Mesma constituição corpórea, jeito de andar e lugar garantido na Constituição de 88. Mas estão ali, dormindo naqueles colchões. Onde será que eles arrumam? Os cães devem ser da rua, também. Eles também são pessoas de rua. Credo, que estranho. Parece que são amigos, eles. Dormem todos juntos, afinal. Sob a mesma marquise. Intimidade de sobra. Os vidros da Avenida são quebrados. É difícil achar um lugar que pareça habitável ali. Cheio de sobrados e vidros quebrados. Se bem que já vi algumas plantas na mureta. Estavam verdes, então é sinal de que alguém jogava água. Cortinas na janela também denunciam. Pra saber se a casa está habitada, tente o truque da cortina. Sempre dá certo. Nossa, é o próximo ponto. Vou dar o sinal.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

É


Quando recebeu o embrulho, os olhos encheram-se de água. E ela toda, de surpresa. Veio faz muito tempo? Bastante, umas duas horas ou mais, disseram. O "1501" fora escrito às pressas, ao mesmo tempo em que entalhado. São paradoxos bonitos. Compreensíveis. E desejáveis, pensou. Por trás daqueles números, letras igualmente desenhadas em outro bilhete, daquelas que a pessoa dispensa seus demorados segundos pra escrever. Era o costume de sempre, era sim. E, por trás daquelas letras, do embrulho, e de todo o dia, dia a dia, a lealdade eterna. Pôde concluir.


sábado, 17 de janeiro de 2009

Aspas #7 - Especial Bushismos


"Eu acho que a guerra é um lugar perigoso".
(BUSH, George W. In: Algum discurso. Washington: Washington DC. 2003)

"Sociedades livres são sociedades cheias de esperança. E sociedades livres serão aliadas contra os poucos odiosos que não têm consciência, que matam ao gosto de um chapéu."
(BUSH, George W. In: Algum discurso. Washington: Washington DC. 2004)

"A informação está em movimento. Você sabe, o noticiário da noite é uma forma, é claro, mas também está se movimentando pela blogosfera e através das internets".
(BUSH, George W. In: Algum discurso. Washington: Washington DC. 2007)


Mais, aqui.



quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A omissão é, por vezes, positiva

Segunda-feira*. Após um macarrão com molho de presunto e bacon (não um dos melhores que já comi), andei sob o sol quente na esperança de encontrá-lo. Quando cheguei à faculdade, a banca ainda estava fechada. Tive que adiar para o horário de folga a esperada missão de encontrar o livro que eu e um amigo omitimos na sexta-feira passada.

-Moço, estes livros são seus?
-Sim! E o preço está atrás de cada um deles.

Fiquei bastante satisfeita quando o encontrei lá, intacto, escondido. Paguei e voltei ao trabalho, feliz da vida e tirando o plástico que sufocava aquela história tão ardilosa.

Agora Lolita me espera**, no melhor dos sentidos.

*Nascido em 18/02/2008. Ressuscitado hoje.
**Já não mais.


Aspas #6

"Quero pegar muitas mulheres. Porque eu sou homem, e homem é bicho".
(BBB9, candidato aleatório ao. In: Primeira edição do BBB9. Globo: Rio de Janeiro. 2009)

sábado, 10 de janeiro de 2009

Política do não-desperdício

-No Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade propunha um novo entendimento da cultura brasileira. Para se fortalecer, ela deveria deglutir (por isso a metáfora ao canibalismo) o que fosse de "fora", misturar com o que fosse de "dentro" e criar, assim, novas formas de afirmação cultural - era mais ou menos o que as professoras diziam.

Confesso que, quando eu estudei pela primeira vez o movimento modernista e, particularmente, o Manifesto Antropofágico oswaldiano, há uns bons anos, eu não tinha muito a real dimensão do processo. Até que eu entendia o conceito, a metáfora com o Bispo Sardinha, a proposta modernista em linhas gerais. Sim, o Manifesto representava o desejo de determinada parcela dos intelectuais brasileiros por uma identidade cultural própria, em detrimento a toda forma de imperialismo cultural, principalmente se observarmos que o Brasil "comemorava" o contenário de sua independência política. No entanto, eu não enxergava o fenômeno cotidianamente, por assim dizer. Meu estoque de exemplos restringia-se àqueles citados pelas professoras ou os lidos nos livros, apostilas e afins.

Aos poucos eu fui percebendo a dimensão dessa antropofagia na cultura brasileira. E, tomando a ousadia de eu mesmo "deglutir" essa noção e expandir o gesto antropófago para fora dos limites da arte, penso que muitas coisas estão "comendo" as outras, a toda hora, sempre. É claro que nem sempre o objetivo é aquele modernista, o de afirmar uma identidade, ou criar uma nova. O "comer" se dá por diversas razões. Mas, que "deglutem", eles "deglutem".

Nas formas tradicionais de arte, os próprios modernistas brasileiros se encarregaram disso. E, em outras manifestações culturais, também deu-se conta do recado. Na música, talvez o exemplo mais contundente no Brasil tenham sido os tropicalistas. E, como que num metamovimento, também escutamos influências desse experimentalismo na música (em algumas, claro) de hoje. Da mesma forma, certos músicos de hoje definem a seu próprio estilo como uma mistura de elementos musicais regionalistas. No cinema, quase todo cineasta (ou todo?) admite influência de outros. Então, os planos cinematográficos de hoje carregam resquícios de outrora E por aí vai.

E a indústria da comunicação? Alguns juram que nem adianta falar nisso, que os media não são sinônimo de cultura. Mas, se considerarmos que 97% das casas brasileiras têm televisão, por exemplo, é mesmo prudente negar que eles são parte dos hábitos culturais brasileiros? Penso que não, né. Na televisão, estão o tempo todo deglutindo. As grades de programação guardam uma semelhança não-declarada entre si. Programas estrangeiros são "aproveitados" aqui dentro, salvas as devidas especificidades, é claro. Como já dizia um certo comediante brasileiro de tempos idos, "na televisão nada se cria, tudo se copia". E na tv comercial isso é bastante compreensível até. Faz mesmo sentido copiar experiências exitosas de outras horas. O apelo comercial é forte e elas precisam se virar. A corrida não tem fim.

Os devaneios poderiam se estender. O assunto dá pano não só para manga, mas para uma muda inteira de roupa. E será que qualquer influência, cópia ou mesmo plágio se constitui numa apropriação? É um tipo de deglutição cultural? Não sei. Ainda estou aberta a influências de outrem.



Aspas #5

"Não quero um helicóptero ou uma lancha. Mas quero ser amigo do dono do helicóptero, ou do dono da lancha".
(BAMBAM, Kleber. In: Globo Repórter - Especial sobre os ganhadores do BBB. Rio de Janeiro: Globo. 2009)